mulher passante

Eu te diria
mulher passante,
do despertar alucinante
que me causas!
Mas, ai! Queria antes
uma pausa, de mil silêncios,
pra contemplar te fora do Tempo,
e descobrir palavras.
As que melhor lhe cabem,
nos braços belos,
aos ombros, cabelos caídos,
na tua pele perene... Ah mulher sem nome!
Que me olha e me crava
e depois vai embora com seu porte real,
de realeza selvagem; felina
ferina!

Te diria,
mulher passante,
se me olhasses nos olhos eternamente.
Te diria,
o que te digo nos olhos eternamente:
A linguagem corpórea animal,
que dispensa falar em palavras
o que só cabe nas mãos.
Te diria,
mulher passante,
porque já te fostes de mim,
dos meus olhos parados,
castanhos.

Te diria,
mulher passante,
todas as línguas dos homens
contidas no meu sonho presente,
e nenhuma delas seria certa,
não seria poesia,
que escorres dos lábios,
não te coraria por acender lhe
um breve fulgor crepitante
nas tuas faces perfeitas.
Só te diria,
mulher passante,
plenamente o que és ao invadir me
os olhos, o pensamento,
assim dessa maneira não dita,
desse sonho irrealizado.

Te digo,
mulher passante,
és um delírio! No meio do dia,
na boca da noite.

O ilógico necessário

Entre as coisas que podem levar um pensador ao desespero está o conhecimento de que o ilógico é necessário para o homem e de que do ilógico nasce muito de bom. Ele está tão firmemente implatado nas paixões, na linguagem, na religião e em geral em tudo aquilo que empresta valor à vida, que não se pode extraí lo sem com isso danificar irremediavelmente essas belas coisas. São somente os homens demasiadamente ingênuos que podem acreditar que a natureza do homem possa ser transformada em uma natureza puramente lógica; mas se houver graus de aproximação desse alvo, o que não haveria de se perder nesse caminho! Mesmo o homem mais racional precisa outra vez, de tempo em tempo, da natureza, isto é, de sua postura fundamental ilógica diante de todas as coisas.



trecho de A Gaia Ciência, de Nietzsche.

Entreaberto (das portas)

A porta
bateu ao vento.

A maçaneta da porta,
tinha rosto de gente,
mas com cara de maçaneta.

[antropomorfismo],
eu li no avesso a olho nu.

Agora,
eu sei que não são maçanetas
que seguramos;
são os narizes das portas,
com várias formas, igual as pessoas da rua,
alguns redondos, compridos, etc.

As portas,
são particularidades, tornaram-se,
tornei-as, personagens, personalidades.
Existem,
as mais clarividentes,
que possuem um olho mágico.
Têm por dom,
o ver e não ser visto.
Velhas portas,
rangem
sua ruída,
descascada sabedoria de abrir
e
fechar.

Portas
olham
ao ser
olhadas.

eu...

entreaberto.

dos erros

Da poesia
um erro de poetas tortos.
Quero o inglório dom[escolha?]
de fazer versos errados,
tortos,
como a minha má escolha
irrevogável.

Falar falar falar!
necessidade burra,
burrice desnecessária.
De linguagem
deveríamos só poesia.
Se o falar não fosse lírico ou
doido varrido, nem coubesse
no ouvido das tartaugas,
sobrava o que tudo engendra:
silêncio.

De tolo
achei minha palavra guardada
mais importante que o caos,
que o que por si só se queria,
e de tolo falei;
nada é mais importante que nada,
muito menos minha palavra guardada,
sossega palavra! Nesse armário pensamento,
aprende entre traças e cupins,
tecidos velhos desfiam ideais,
se guarde palavra guardada
que não és mais importante que o que está.
Existem muitas e muitas palavras
guardadas,
e que só assim
são sábias,
porque assim são
ainda sem forma clara; são só o que podem ainda ser.
Se se perderem,
não há mal,
alimentarão as traças,
alimentarão os silêncios,
e os silêncios são
o absoluto.

predigo

Era só isso sempre:

uma necessidade aguda

que de tanto

quase não é.

Viver, se repetir

e não se odiar.

Tudo muito, exageros,

há que se apreciar

a beleza do que é pouco.

Eu atendi sem angústia,

pra acalmar o choro,

e cantei de trovador

ou pobre menestrel, cantei,

pra tentar o que há por trás do véu,

cantei sabendo que era só isso

e depois o vôo. Depois,

me recolhi,

miudamente, encostei as frases,
calei me: voz e violão.
Olhei os signos
[já sabia os significados(significâncias)]
não quis mais
e
pensei: estrada.

Arte de amar

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Só em Deus ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.




*aquele poema do Manoel Bandeira.

Alguma Casa

um barbante

muitos nós, carretel
no chão
de um teto
sem parede.

MANCHETE

de um jornal,
bem velho,
bem mentido,
mal mal...

mal esquecido.

A janela
do quarto
se quebrou por cansaço

ferrugem,
sapatos,
mobília dormida,
desuso de coisas.

Tantas canções,
tantas memórias...
mães e filhas do
mesmo

esquecimento,
do mesmo
cimento.

Zaqueu ficou

Velho Zaqueu ficou. Sempre ficou. Seu saber consistia ficar.
Não era homem de ir. Era de ficar.
De raíz. Como que se tivesse ali naquele chão rachado brotado qual mandacaru
pela uma fresta mais barrenta que poeira. Planta caatingueira é isso:
um não dito tão forte que se faz ouvidado. Que não vai.
Essa ficância de insistência que não mata a raíz de essência
mas num chega pra flor. De tanto não ir; nem querer
gente se debruça ensimesmado e o quintal se agiganta no horizonte do olho.
Santo Zaqueu zeladô de todos os mistérios que não são todos
mas são todos os que são, de tanto se arrepensar encontrou uma garrafa vazia,
impossível de se arrolhar porque nela o mistério era o seu próprio vazio.
Zaqueu parou. Coçou a barba e pensou em Lilo... Foi reticente seu pensar,
demorado. Campeou até a sombra de uma esperta. Enrolou uma palhinha pra mode
neblinar os pensamentos com o intuito de depois.
Talvez nunca mais Zaqueu usasse seu velho ofício, talvez fosse a última garrafa
o seu último mistério descomeçado, interminado. O seu próprio mistério.
Pela primeira vez em ser Zaqueu sentiu velhice. Não nos ossos nem nos pés.
Na garganta dalma; talvez fosse saudade.
Santo velho nunca tinha esperado nada que fosse na vida.
Nem também não tinha nunca querência de passar tempo, pois praquele antigo
olhar o vôo das borboletas requeria muita concordação.
Mas agora, na boa hora em que a terra recomeçava a beber seu suor trabalho
ele arreparava velhice velha, saudade chuva.
E pensava se o ele próprio engarrafaria o mistério de por detrás do mistério.
Sertão um livro, um poeirão batido sem folha inteira e um pensamento:
toda saudade é uma espécie de velhice. Zaqueu ficou.