l. Mandamento

Eu só queria atravessar algumas ruas,
escolher os pães mais macios,
olhar distraidamente as meninas a caminho da perfeição
e ser minha inércia no vácuo tranquilamente
sem ter que sentir a culpa de viver
nos olhos dos vira-latas que aguardam a hora do lixo.

Não pude,
não fui capaz do egoísmo ameno,
tive que matar minha individualidade.
Todo humanista é um suicida.
"Tudo creio já foi pensado e dito por tantos e tontos. Ou quase tudo. Ou quase tontos. De modo que não há novidade debaixo do sol - e isso também já foi dito. "Os temas do mundo são pouco numerosos e os arranjos são infinitos" - falou Barthes. Então, o que se pode fazer de melhor é dizer de outra forma. Se for para tirar gosto poético, vai bem perverter a linguagem. Não bastam licenças poéticas. Há que se ir às licenciosidades. Temos de molecar o idioma para que ele não morra de clichês. Subverter a sintaxe até a castidade: isto quer dizer: até obter um texto casto. Um texto virgem que o tempo e o homem ainda não tenham espolegado. O nosso paladar de ler anda com tédio. É preciso propor novos enlaces para as palavras. Injetar insanidade nos verbos para que transmitam aos nomes seus delírios. Em Nunes Peres Sandeu, nas Cantigas dos Trovadores Medievais selecionados por Clarice Berardinelli, encontro estes versos:

e, poys aqueles olhos meus
Por el perderem o dormir

A beleza se abre no verso "Por el perderem o dormir". Porque perder o dormir está no lugar de perder o sono, que é um lugar comum e portanto se esgotou de expressar. Há que se encontrar a primeira vez de uma frase para ser-se poeta nela. Mas tudo isso é tão antigo como mijar na parede. Só que foi dito de outra maneira."




trecho de entrevista do velho bandarra Manoel de Barros