o Poema no Escuro

A nossa história não está clara,
mas guarda em si qualquer beleza
ou indício de bravura;
é o poema no escuro.

O destino do nosso passado

Repleto de tiranos, selvagens, bandeiras, ditadores
e nenhum herói
[afora os farsantes].

É o chão dos esquecidos, dos marginais,
todos prontos e capazes das maiores atrocidades,
todos filhos de Caim carregando na testa sua sina.

Existem também os santos, muitos deles, redentores anônimos da humanidade,
principalmente nos viadutos e lixões,
principalmente onde não passam carros,
onde
só passam carros sem uma alma sequer. Mas sua carne é invisível,
seu nome impronunciável - eles estão expostos ao sol do meio-dia,
mas sua pele não queima nem cheira, porque eles sequer existem, porque eles não são mais que
uma massa indistinta e estarão sempre no escuro.

Não importa o quanto gritem.

No fundo do rio Amazonas, do São Francisco,
repousa esquecida à salvo nossa segunda face - não a do perdão humilhado,
receoso de reivindicar qualquer coisa que seja;
mas a do direito ao ódio não sublimado, a face da desforra secular, da antropofagia canibal faminta de tudo que quebra regras, burla leis e nos garante o inferno. Enquanto na superfície, trafegam
os motores, a falácia, pelo quintal da América Modelo
com seus mapas geopolíticos grotescamente alterados,
seu entretenimento homicida, seu melhor sorriso de saqueador
[estamos nos Trópicos],
sua mão grande de burguês sempre disposta a barganhar o que quem que seja,
com traidores, com arcebispos e até mesmo com Deus,
porque comprar almas mais baixas para que cometam e carreguem os pecados
dos quais são incapazes é tão justo
quanto a usura.

Antes, muito antes.
Seremos então a sesmaria portuguesa; a vizinha
forçadamente inimiga de los hermanos: - tão diferentes de nós!
Mas não! Não há nada que nos estreite, que seja capaz
de tornar-mo-nos ao menos suportáveis uns aos outros. Nem mesmo Além-Mar
somos compatíveis nas raízes de nossas árvores genealógicas putrefatas,
corroídas desde a casca até a moral,
nossa frágil moral de bons costumes, tolerância e respeito pela propriedade privada.
Deveríamos de fato refazer a guerra do Paraguai,
dizimar toda a América Hispânica num ciclo ad eternum ininterruptamente recomeçado,
para podermos enfim
adorar nossas catedrais, nossos costumes tão duramente reproduzidos
a sós com nossa mediocridade
e ainda assim indispensáveis aos pés do oratório.

Não está clara nossa história,
mas na sua escuridão guarda ainda qualquer beleza oculta.
Qualquer fagulha de insurreição. E para tanto,
não é preciso acender a luz, abrir a janela, olhar o sol.
Basta tatear as trevas com mãos noturnas - a noite é tão insondável quanto o fundo do rio, quanto a aurora do galo.

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