Corpóreo

Só quando soubermos nossos corpos,
depois de resignificarmos nossas palavras,
e nossos dicionários estiverem devidamente revistos,
poderemos nos sentar à mesa
sem deter nossos instintos,
fora dos limites, fora dos relógios.

Quando além for um sinônimo
de menos - porque o passado foi o princípio
de um erro contado diariamente -
compreensão.

Essa pretensão soberba
de acertar escolhas, de escolher amores, amigos e falar alto
pra dar mais verdade
a essas idéias tão profundamente intrincadas;
como se eles soubessem a fórmula
de alguma poção mágica
e a guardassem a salvo dos patetas,
vis, ordinários e miseráveis,
dentro de conceitos esculpidos cuidadosamente
através dos séculos,
No fundo de uma postura enciclopédica
que dissimula objetivos torpes,
porque o mundo é uma seara orgulhosa onde só os eleitos
têm vez.

Amantes

Dois inimigos. É assim que Carlos Drummond de Andrade define os amantes, no poema Destruição, no qual diz também que são meninos estragados pelo mimo de amar. São, mas não apenas isso.

Os amantes são narcisos, amam-se no outro, procuram nos que amam a certeza de que são amáveis.

Os amantes riem muito, e choram, são extremados na dúvida, na paixão, no ciúme – porque o amor é um descontrole.

Os amantes interferem na paisagem, atrapalham quem fica atrás na poltrona do cinema, retardam o trânsito no sinal verde, chocam os pudicos, impedem a passagem – porque não podem adiar um beijo.

Os amantes ouvem estrelas, pálidos de espanto.

Os amantes são namorados, noivos, par, casal, cônjuges, senhor e senhora, marido e mulher, caso, companheiros, affaire.

Os amantes escrevem seu amor nos muros, no último andar dos prédios, nos viadutos, nos jornais, nas faixas de rua – porque não conseguem guardar só para si aquele desconforto.

Os amantes riem até sem motivo, o que passa a ser um motivo.

Os amantes que se casaram são ameaçados de dia pela rotina, pelos parentes, por erros banais do tipo bife salgado, pelos azares do trânsito, pela conta do telefone – mas de noite esquecem.

Os amantes inventam toques, aconchegos, maravilhas, em modesta porém valiosa contribuição à cultura universal.

Os amantes cochilam de dia.

Os amantes compreendem os assassinatos, a doçura, a entrega, a covardia, a renúncia, a loucura, as perversões, a sordidez, a tragédia, a comédia, o ridículo, o sublime, o ódio, o suicídio, o drama, o sacrifício, todos os excessos humanos – porque há um pouco de tudo isso no amor.

Os amantes espicaçam-se como abelhas.

Os amantes adúlteros carregam culpas que impedem sua felicidade, mas tentam, tentam, e no tentar mais se agarram, e mais se afundam, e se debatem como dois náufragos.

Os quase amantes sabem aonde querem chegar, e vão indo.

Os amantes são obra de puro acaso, como tudo, pois tudo é formado por átomos que se encontraram há bilhões de anos e se agruparam em um corpo, vivo ou mineral, doce ou ácido, feliz ou infeliz.

Os amantes são egoístas aos pares.

Os amantes tendem a relaxamentos: acordam tarde, comem mal, descuidam-se dos amigos, faltam ao trabalho, perdem a média na matemática.

Os amantes confiam um no outro – e desconfiam com a mesma cegueira.

Os amantes dividem tudo: um doce, um copo de água, um aluguel, um crime.

Os amantes que têm filhos cortam grandes fatias do coração para as crianças, mas o coração não diminui, acrescenta-se, cresce de novo como rabo de lagartixa, para acomodar a pessoa amada.

Os amantes procuram-se como viciados.

Os amantes correm muitos riscos: de ferir o outro, de entender mal, de esperar demais ou de menos, de não suportar um não, de morrer de paixão. Por isso têm aquele ar aceso, para não errar.

Os amantes estão à beira de um abismo e olham o fundo, fascinados.

Os amantes esquecem a luz acesa, o fogão ligado, a torneira jorrando, o telefone fora do gancho... – nada é mais urgente.

Os amantes não chegaram prontos e acabados. Esculpiram-se, cada um tomou uma peça bruta e a moldou a seu gosto, desbastou imperfeições, poliu traços, gestos e humores. (Paul Éluard: "Qual de nós dois inventou o outro?".)

Os amantes são felizes às segundas, quartas e sextas-feiras, e infelizes às terças, quintas e sábados – e no domingo eles descansam, que ninguém é de ferro.




Crônica de Ivan Ângelo