Ode ao Absurdo

Eu não quero ler o que vocês escrevem. Estou cansado de sustentar o fardo da simpatia, da atenciosidade, do tom de voz ameno que emprego ao telefone ou na padaria; quando diante de senhorinhas frágeis e caducas, como a falsear uma benevolência cristã que me foi imposta diariamente desde o nascimento - meu parto pagão. Eu sou o egoísta, o vaidoso; do alto da minha soberba filosófico-literária que permanece incompreendida aos olhos dos passantes, dos supostos devoradores de clássicos, dos patéticos diários expostos, eu escarro a minha mais alveolar indiferença, me enfastio e escrevo. Não para exterminar o tédio, nem para fazer dele matéria de minha crônica, mas simplesmente para ser lido, ser lido e adorado pela cara das palavras que escolho copiosamente e sob as quais me escondo do risco de ser apreendido; me resguardo de perder a alma na distância existente entre a palavra que alguém lê e o silêncio que escrevi. Renuncio à adulação dos elogios barganhados no salão estéril das harpias, quero ser lido apenas. Sou um perversor de palavras destituído de propósitos, quero não mais que a floração sexual de palavras arrevesadas, vadias. Sou o condenado provocador de parricídios, o absurdo que não coube no código de ética e escorreu nos panos nobres, manchou de porra a alvura da seda islâmica, a obscuridade do hábito clerical; sou eu o feiticeiro que sem pudor ergueu o sexo para um mundo de anjos celibatários. Eu sou o plebeu que preferiu libertar Barrabás a Jesus Cristo. Eu sou o louco que gargalhava desesperadoramente ante as traições romanas. Eu sou a navalha entre os dedos do pé de Madame Satã, sou a inconseqüência que move e mata o mundo na desmedida concomitância de cães no cio. Eu sou o narciso, o dionísio nietzschiano que empunha o martelo debaixo de um temporal de vinho e putas decaídas, deliradas de virtudes pecaminosas, insaciáveis em seu desejo de desafiar deus. Eu sou a primeira pedra atirada para qualquer lado. Sou o lado algum. O pregador babilônio que segue impune, destruindo famílias, religiões, outdoors, porque eu não quero a aparente tranqüilidade da vida, a normalidade bordada nos uniformes comprados anualmente. As máscaras estão todas perdidas, indissimuláveis, e isso não tem nada a ver com Apolo, trata-se do abismo secular da existência. Eu estou em Sodoma e Gomorra simultaneamente, gozando meus últimos impropérios enquanto o arcanjo estivador ateia fogo ao paraíso e cega a urgência dos homens que se excederam em olhar. Eu estou em Sodoma e Gomorra simultaneamente e brindo à minha última orgia que é farta e grandiosa face à ira arrasadora do deus que pilha e saqueia os prazeres alheios contidos na sua desonrosa criação. Eu não quero ascender ao Olympo para o banquete dos deuses, nem repousar nos campos Elíseos ao lado dos bravios e vencedores heróis inventados. Eu estou no lixão, no esgoto halogêneo, confrontando a precariedade do homem - de mim mesmo. Eu vivo a contenda atemporal entre mim e eu mesmo. Eu não estou. Quero que não me leiam mais, que não me decifrem mais, enquanto miro esse deserto de sal à exaustão ocular e nada mais reste apesar de minhas retinas intactas. Quero ser o primeiro a esquecer absolutamente de mim para não ter que dividir essa importância com mais ninguém.

Corpóreo

Só quando soubermos nossos corpos,
depois de resignificarmos nossas palavras,
e nossos dicionários estiverem devidamente revistos,
poderemos nos sentar à mesa
sem deter nossos instintos,
fora dos limites, fora dos relógios.

Quando além for um sinônimo
de menos - porque o passado foi o princípio
de um erro contado diariamente -
compreensão.

Essa pretensão soberba
de acertar escolhas, de escolher amores, amigos e falar alto
pra dar mais verdade
a essas idéias tão profundamente intrincadas;
como se eles soubessem a fórmula
de alguma poção mágica
e a guardassem a salvo dos patetas,
vis, ordinários e miseráveis,
dentro de conceitos esculpidos cuidadosamente
através dos séculos,
No fundo de uma postura enciclopédica
que dissimula objetivos torpes,
porque o mundo é uma seara orgulhosa onde só os eleitos
têm vez.

Amantes

Dois inimigos. É assim que Carlos Drummond de Andrade define os amantes, no poema Destruição, no qual diz também que são meninos estragados pelo mimo de amar. São, mas não apenas isso.

Os amantes são narcisos, amam-se no outro, procuram nos que amam a certeza de que são amáveis.

Os amantes riem muito, e choram, são extremados na dúvida, na paixão, no ciúme – porque o amor é um descontrole.

Os amantes interferem na paisagem, atrapalham quem fica atrás na poltrona do cinema, retardam o trânsito no sinal verde, chocam os pudicos, impedem a passagem – porque não podem adiar um beijo.

Os amantes ouvem estrelas, pálidos de espanto.

Os amantes são namorados, noivos, par, casal, cônjuges, senhor e senhora, marido e mulher, caso, companheiros, affaire.

Os amantes escrevem seu amor nos muros, no último andar dos prédios, nos viadutos, nos jornais, nas faixas de rua – porque não conseguem guardar só para si aquele desconforto.

Os amantes riem até sem motivo, o que passa a ser um motivo.

Os amantes que se casaram são ameaçados de dia pela rotina, pelos parentes, por erros banais do tipo bife salgado, pelos azares do trânsito, pela conta do telefone – mas de noite esquecem.

Os amantes inventam toques, aconchegos, maravilhas, em modesta porém valiosa contribuição à cultura universal.

Os amantes cochilam de dia.

Os amantes compreendem os assassinatos, a doçura, a entrega, a covardia, a renúncia, a loucura, as perversões, a sordidez, a tragédia, a comédia, o ridículo, o sublime, o ódio, o suicídio, o drama, o sacrifício, todos os excessos humanos – porque há um pouco de tudo isso no amor.

Os amantes espicaçam-se como abelhas.

Os amantes adúlteros carregam culpas que impedem sua felicidade, mas tentam, tentam, e no tentar mais se agarram, e mais se afundam, e se debatem como dois náufragos.

Os quase amantes sabem aonde querem chegar, e vão indo.

Os amantes são obra de puro acaso, como tudo, pois tudo é formado por átomos que se encontraram há bilhões de anos e se agruparam em um corpo, vivo ou mineral, doce ou ácido, feliz ou infeliz.

Os amantes são egoístas aos pares.

Os amantes tendem a relaxamentos: acordam tarde, comem mal, descuidam-se dos amigos, faltam ao trabalho, perdem a média na matemática.

Os amantes confiam um no outro – e desconfiam com a mesma cegueira.

Os amantes dividem tudo: um doce, um copo de água, um aluguel, um crime.

Os amantes que têm filhos cortam grandes fatias do coração para as crianças, mas o coração não diminui, acrescenta-se, cresce de novo como rabo de lagartixa, para acomodar a pessoa amada.

Os amantes procuram-se como viciados.

Os amantes correm muitos riscos: de ferir o outro, de entender mal, de esperar demais ou de menos, de não suportar um não, de morrer de paixão. Por isso têm aquele ar aceso, para não errar.

Os amantes estão à beira de um abismo e olham o fundo, fascinados.

Os amantes esquecem a luz acesa, o fogão ligado, a torneira jorrando, o telefone fora do gancho... – nada é mais urgente.

Os amantes não chegaram prontos e acabados. Esculpiram-se, cada um tomou uma peça bruta e a moldou a seu gosto, desbastou imperfeições, poliu traços, gestos e humores. (Paul Éluard: "Qual de nós dois inventou o outro?".)

Os amantes são felizes às segundas, quartas e sextas-feiras, e infelizes às terças, quintas e sábados – e no domingo eles descansam, que ninguém é de ferro.




Crônica de Ivan Ângelo

Reabilitação da Linguagem

É pela frase que eu começo.
Minha intenção é de profundidades –
a transcendência das linguagens –
que contam sentimentos ancestrais,
entre folhas de bananeiras
habilitadas para insetos.
É coisa que não se diz com boca,
isso boca não sabe dizer.
Nem valeria tanta matéria pura
repetida sem estilo.
Se eu palavreasse esse cheiro fundo
era mais um cuspe, mais um dejeto.

Falar da morte é um depois pra trás.
Pensar no medo não é sentir,
por isso coçar a canela
e assoar o nariz revelam o oculto.
São coisas que minha mão
me disse antes de fugir.

O Corpo são essas vontades.

Quando li Manoel de Barros,
quase não quis descoser escritos.
Desvirginar folhas em branco
com pequenos acertos respeitadores
ou com um verso limpo
que não fosse adúltero.
Seu nada aquático me poesiou.
E o escuro andou pela desimportância,
fiz paráfrase de cotovelo:
- descobri existência na unha cortada.

No mundo todos querem falar
e cansam o dormir das pedras.
Eu quero ser ouvido por lagartos.
Meu distanciamento de entender
quer desentranhar perplexidades de peixe.
O peixe se espanta diante de um pé,
como uma pedra sobressaltada.

Sou velador de pedras dormidas.
Quero pessoa que inventa verdades sem objeto,
pessoa com perplexidade de peixe.
Não é só fabricar uma ilusão amarela,
é advogar em saudade do caramujo.
A terra mijou muitos rios.
As pessoas estão encharcadas de nuvem.
Não vejo o Nada
no dizer de etnociências.
O silêncio se instalou em mim o seu olhar.

Parecer Fenomenológico Existencialista

No fundo a gente não sabe nunca
só na hora da morte, quando a intenção abandona o corpo,
deixa de habitá-lo,
o homem morre quando ele perde a capacidade
de projetar o seu olhar sobre as coisas,
por vezes o homem morre antes do corpo.



* Nota pedagógica: a repetição exaustiva de questões já apreendidas abre brechas para erros induzidos que ganham substância na linguagem.

As Carolas de Vila Rica

O absurdo de súbito rompeu com as vozes
das senhoras recatadas em suas mortalhas lutuosas
e subiu muito além dos muros e telhados
que guardaram essas pobres ovelhas por tantos invernos
à salvo! do bem e do mal, dos perigos da carne;
pastando cabisbaixas sem comer a raiva ou o sal
[apenas o obedecimento]
e essa gratidão silenciosa por não morrer antes do tempo,
por tua proteção e tua palmatória que as mantém à salvo do inimigo,
à salvo de serem salvas;
do fascínio nadificante exercido pelo abismo,
da traição que cada um carrega na testa,
da vontade alucinada de pular e não cair jamais.

Casas tão profundamente edificadas feitas de pura metafísica
conservando taciturnas expressões de pedra e penumbra
como que para adorar a privação inutilmente fracassada,
porque regozijam-se ao ver tua satisfação em estrepar-lhes o couro,
porque querem e reivindicam o limbo eterno!

Já não podem mais o paraíso das belezas intocáveis
e até preferem as dores da penitência
ao pudor de não sentir nada.

" Seria quando a gente limpa ele de algum verniz, de alguma
semostração, de brilhos falsos, de preciosismos, das dores de cor-
no e coisas que tantas. É preciso que o verso seja o indizível pessoal
de cada um. Que as nossas caras e as nossas verdades não sejam
expostas senão de costas. Que seja o verso um disfarce de nós, uma
pose ambígua. A despersonalização serve pra multiplicar o que a gente é.
"O verso tem que ser o véu e a capa de uma outra coisa",
como queria Fernando Pessoa. O verso está sol quando seja apenas
linguagem."


trecho de uma entrevista de Manoel de Barros.

Aspiração

" Já não queria a maternal adoração
que afinal nos exaure, e resplandece em pânico,
tampouco o sentimento de um achado precioso
como o de Catarina Kippenberg aos pés de Rilke.

E não queria o amor, sob disfarces tontos
da mesma ninfa desolada no seu ermo
e a constante procura de sede e não de linfa,
e não queria também a simples rosa do sexo,

abscôndita, sem nexo, nas hospedarias do vento,
como ainda não quero a amizade geométrica
de almas que se elegeram numa seara orgulhosa,
imbricamento, talvez? de carências melancólicas.

Aspiro antes à fiel indiferença
mas pausada bastante para sustentar a vida
e, na sua indiscriminação de crueldade e diamante,
capaz de sugerir o fim sem a injustiça dos prêmios."


simplesmente Drummond.

Maio

Descobri que gosto de Maio.
Gosto de escrever outono,
das pessoas que me ensinaram
a beleza de Maio
(principalmente as desconhecidas).

Gosto da clareza de Maio
mais essas tristezas bonitas,
nossos cabelos de vento e
Aquele acorde menor com 6ª reluz
diante da tua cama de folhas
enquanto eu componho uma harmonia imperfeita
pra você improvisar deliberadamente sua beleza,
que suspira e se desapega em Maio.

Papo UniversiOtário nº 2

Tenha MEDO! Lado direito, lado esquerdo, de cima debaixo se aprende a pensar que apertar o nariz e saber onde a África não está, nunca esteve é a mesma ação da influência de idéias - porque sim e/ou não - [comida tem que ser] uma coisa engraçada: abóbora enfeitada "such a Fuc-King halloween" MAIS + transgenia pra mim! Suco de pesticida(ROUNDUP na veia e heroína no rim) to be, to be him. Eugenia é uma coisa muito pior do que o fim.
Crianças e quadrados não gostam de psicodramas alimentícios na hora do almoço, na hora do Naruto, enquanto eu fumo um charuto e coloco vírgulas em lugares errados, sujeitos à guincho, sem solução criativa para problemas ainda não fabricados; para defeitos com defeito de fábrica, dos quais não abrimos mão de não abrir mão, porque premeditamos e vamos assassinar a sangue frio toda e qualquer surpresa surpreendida por e com nossas bolas de cristal e fio e cobre e chip e fone e fino e rádio-atividade para operacionalizar alegremente problematizações pré-elaboradas através de olhares laboratórios e reprovadores que nos transmutarão em computadores que amam e fazem piadas via microondas, via wireless, via satélite, via Dutra, via oral[através de olhares reprovadores e laboratórios que nos transmutarão em computadores que amam e fazem sexo estelar, na rodovia, com auxílio GPS].
Nossos princípios retro-projetados, retro-introjetados, introjetados pelo reto em cápsulas supositórios com dissolução rápida, delgada, grossa, das tripas e do coração enfezado de coliformes, de clorofórmio, qualquer onda barata, qualquer onda de barata que vira gente e pouco se fode por filosofias escrotizantes, porque elas não querem nenhuma náusea que não seja fecal, orgânica-alimentar com ou sem drama ou fetiche, sexualidade olfativa é uma forma de paladar. O caminho inverso de amar toda precariedade arbitrária de existir, consumir, falar, excretar, feder e não se importar que o que a gente já jogou fora ainda é um lugar.

dos imateriais encontros

Quando depois de toda história
contada em livros derramados
por gerações de fanáticos iconólatras
que ensaiaram seu sucessivo fracasso
sem causa e sem conserto,
nos deparemos quem sabe com a nossa memória interrompida,
saberemos quem deu a ordem

de atear fogo à essas casas!
e pensaremos à altura do fogo o seu som
que recobra e reivindica as coisas que só se movem paradas.

Terá sido como pensar a luz
enxergando o olho ou o rio bebendo o peixe e o homem
enquanto se mergulha no próprio rumor que ecoa dentro de mim,
quando relembro de encontrá-lo ainda antes de tê-lo visto ou tocado.
São coisas que a história não guarda.
Coisas que não podem ser datadas.

Antes de dormir

Antes de dormir
leituras inacabadas
uma reza do ideal
arquitetura celeste
curva no invisível
vontade de sentir
a inexatidão de querer
a distância das coisas
a surpresa de um verso
que não se adivinha
na lógica desmontada
por palavras alheias
ao destino composto
de sonhos que rimam
na avessa fonética
de uma criatura maior
que o tempo concebido
em fazer-se por nada
só a vontade de ver
concluído pra fora
o abissal sedimento
desmemoriado da vida
que se acumula nos leitos
de oceanos amantes.

Carta para Manoel de Barros

Por fácil que seja o não ter que dizer e ficar de sobrevôo na amplitude
das coisas anominais que penso ter aprendido nas impressões versadas
que Bernardo derramou dos olhos e das mãos e o senhor muito manso poesiou,
Drummondiana é a razão que me leva a querer te escrever o que ainda
que em forma de assobios lhe chegasse algo parecido com uma carta,
e talvez lhe fizesse lembrar daquele seu amigo Rômulo Quiroga que pintava
com casca-árvore-semente-gosma-de-lagarta e até quem sabe te inspirasse
escrever a ele uma carta sobre nada que guardasse consigo muitas águas
e um caramujo-correio a levasse junto com terra úmida mastigada
e cascalhos envelhecidos enquanto o Bernardo caça urupê no mato e se esquece
das mariposas pousadas sobre suas orelhas de pau como adornos naturais
apaziguados em seu coração de peixe serenado - coisa que mistura
propriedades delirantes nascidas na quimera de vegetais subtropicais
ao esquecimento de muito antigas ignorãças que só as pedras
roladas de muitos temporais acumulados saberiam não dizer nem sombrear.

Garças do pantanal trazem no papo mistérios silenciados,
sinto saudade do seu sítio na roça que nunca fui.

Ode à idiotia

Que o espelho cuide sempre de esconder a verdade
Que o espelho seja o meu Outro quando eu estiver só
Que eu nunca esteja só durante a novela das nove
Que o jornalismo sangre cada vez mais e diga cada vez menos
Que a gaveta tenha sempre analgésicos guardados
Que a enxaqueca de cada dia nos dai hoje nunca falte
Que a justiça de cega esmole na sarjeta algumas misericórdias
Que a ciência sentencie a razão do pão do pó e do pâncreas
Que a razão justifique a polícia
Que a fé não se realize senão por indução
Que os heróis tenham pelo menos trezentos anos de história
Que o medo seja sofrido em paz na propriedade privada
Que o amor não se esqueça de fazer as compras do mês
Que a liberdade mova uma ação jurídica nos tribunais
Que de carro se use cinto de segurança
Que o mundo deixe de ser redondo
Que os monstros não sejam feitos de aço
Que a favela anoiteça em paz
Que Antônio Conselheiro seja de uma vez por todas esquecido
Que o brasileiro não seja mais que aquele que vende pau brasil
Que a economia jamais seja considerada política
Que essas verdades que digo desdobradas se repitam à exaustão.