O Autômato

Respiro por preconceito. E contemplo o espasmo das ideias, enquanto que o Vazio sorri a si mesmo… Não há mais suor no espaço, não há mais vida; a menor vulgaridade a fará reaparecer: basta um segundo de espera.
Quando se percebe existir, experimenta-se a sensação de um demente maravilhado que surpreende sua própria loucura e busca inutilmente dar-lhe um nome. O hábito embota nosso assombro de existir: somos, e vamos além, ocupamos nosso lugar no asilo dos existentes.
Conformista, vivo, tento viver, por imitação, por respeito às regras do jogo, por horror à originalidade. Resignação de autômato: simula fervor e ri disso secretamente; só submeter-se às convenções para repudiá-las às escondidas; figurar em todos os registros, mas sem residência no tempo; salvar a cara, quando seria imperioso perdê-la… Aquele que despreza tudo deve assumir um ar de dignidade perfeita, induzir ao erro os outros e até ele mesmo: cumprirá assim mais facilmente sua tarefa de falso vivente. Para que mostrar nossa ruína se podemos fingir a prosperidade? O inferno não tem boas maneiras: é a imagem exasperada de um homem franco e grosseiro, é a terra concebida sem nenhuma superstição de elegância e de civilidade.
Aceito a vida por cortesia: a revolta perpétua é de tão mau gosto como o sublime do suicídio. Aos vinte anos se rompe em impropérios contra os céus e a imundície que cobrem; depois se cansa. A pose trágica só corresponde à puberdade prolongada e ridícula; mas são necessárias mil provas para alcançar o histrionismo do desapego. Quem, emancipado de todos os princípios de costume, não dispusesse de nenhum dom de comediante, seria o arquétipo do infortúnio, o ser idealmente desgraçado. É inútil construir tal modelo de franqueza: a vida só é tolerável pelo grau de mistificação que se põe nela. Tal modelo seria a ruína da sociedade, pois a “doçura” de viver em comum reside na impossibilidade de dar livre curso ao infinito de nossos pensamentos ocultos. É porque somos todos impostores que nos suportamos uns aos outros. Quem não aceitasse mentir veria a terra fugir sob seus pés: estamos biologicamente obrigados ao falso. Não há herói moral que não seja ou pueril, ou ineficaz, ou inautêntico; pois a verdadeira autenticidade é o aviltamento na fraude, no decoro da adulação pública e da difamação secreta. Se nossos semelhantes pudessem constatar nossas opiniões sobre eles, o amor, a amizade, o devotamento seriam riscados para sempre dos dicionários; e se tivéssemos a coragem de olhar cara a cara as dúvidas que concebemos timidamente sobre nós mesmos, nenhum de nós proferiria um “eu” sem envergonhar-se. A dissimulação arrasta tudo o que vive, desde o troglodita até o cético. Como só o respeito das aparências nos separa dos cadáveres, precisar o fundo das coisas e dos seres é perecer; conformemo-nos a um nada mais agradável: nossa constituição só tolera uma certa dose de verdade…
Guardemos no fundo mais profundo de nós mesmos uma certeza superior a todas as outras: a vida não tem sentido, não pode tê-lo. Deveríamos nos matar imediatamente se uma revelação imprevista nos persuadisse do contrário. Se o ar desaparecesse, respiraríamos ainda; mas sufocaríamos no mesmo instante se nos fosse roubada a alegria da inanidade…





por: Emil Cioran
em: Breviário de Decomposição

o Poema no Escuro

A nossa história não está clara,
mas guarda em si qualquer beleza
ou indício de bravura;
é o poema no escuro.

O destino do nosso passado

Repleto de tiranos, selvagens, bandeiras, ditadores
e nenhum herói
[afora os farsantes].

É o chão dos esquecidos, dos marginais,
todos prontos e capazes das maiores atrocidades,
todos filhos de Caim carregando na testa sua sina.

Existem também os santos, muitos deles, redentores anônimos da humanidade,
principalmente nos viadutos e lixões,
principalmente onde não passam carros,
onde
só passam carros sem uma alma sequer. Mas sua carne é invisível,
seu nome impronunciável - eles estão expostos ao sol do meio-dia,
mas sua pele não queima nem cheira, porque eles sequer existem, porque eles não são mais que
uma massa indistinta e estarão sempre no escuro.

Não importa o quanto gritem.

No fundo do rio Amazonas, do São Francisco,
repousa esquecida à salvo nossa segunda face - não a do perdão humilhado,
receoso de reivindicar qualquer coisa que seja;
mas a do direito ao ódio não sublimado, a face da desforra secular, da antropofagia canibal faminta de tudo que quebra regras, burla leis e nos garante o inferno. Enquanto na superfície, trafegam
os motores, a falácia, pelo quintal da América Modelo
com seus mapas geopolíticos grotescamente alterados,
seu entretenimento homicida, seu melhor sorriso de saqueador
[estamos nos Trópicos],
sua mão grande de burguês sempre disposta a barganhar o que quem que seja,
com traidores, com arcebispos e até mesmo com Deus,
porque comprar almas mais baixas para que cometam e carreguem os pecados
dos quais são incapazes é tão justo
quanto a usura.

Antes, muito antes.
Seremos então a sesmaria portuguesa; a vizinha
forçadamente inimiga de los hermanos: - tão diferentes de nós!
Mas não! Não há nada que nos estreite, que seja capaz
de tornar-mo-nos ao menos suportáveis uns aos outros. Nem mesmo Além-Mar
somos compatíveis nas raízes de nossas árvores genealógicas putrefatas,
corroídas desde a casca até a moral,
nossa frágil moral de bons costumes, tolerância e respeito pela propriedade privada.
Deveríamos de fato refazer a guerra do Paraguai,
dizimar toda a América Hispânica num ciclo ad eternum ininterruptamente recomeçado,
para podermos enfim
adorar nossas catedrais, nossos costumes tão duramente reproduzidos
a sós com nossa mediocridade
e ainda assim indispensáveis aos pés do oratório.

Não está clara nossa história,
mas na sua escuridão guarda ainda qualquer beleza oculta.
Qualquer fagulha de insurreição. E para tanto,
não é preciso acender a luz, abrir a janela, olhar o sol.
Basta tatear as trevas com mãos noturnas - a noite é tão insondável quanto o fundo do rio, quanto a aurora do galo.

segredo

Poesia é uma coisa muito rara.

A poesia é incomunicável.

Fique torto no seu canto.

Não ame.



Ouço dizer que há tiroteio

ao alcance do nosso corpo.

É a revolução? o amor?

Não diga nada.



Tudo é possível, só eu impossível.

O mar transborda de peixes.

Há homens que andam no mar

como se andassem na rua.

Não conte.



Suponha que um anjo de fogo

varresse a face da terra

e os homens sacrificados

pedissem, perdão.

Não peça.





Drummond.
"O destino do homem como se assemelha ao vento. A alma do homem como se assemelha à água. Por que tanto tormento, tanta aflição? Morrer é só não ser visto. É preciso abraçar a volúpia. Fartar-se de prazeres. Não ter medo da morte."

Goethe

O Verbo

O amor é.

Todas as coisas são.
[Não ser]
existe em algum não lugar-
comum;

como tudo que a alma inventa
e o tempo não alcança.

A dúvida é um pertencimento,
a chance eterna,
o feixe de luz.

O outro - sou - é.
Entre nós o poder
da
palavra

Lancinante em seu círculo
de fogo
com
a força de lágrimas
sem olhos

O amor é.

Alhures

E de tudo aquilo que não morreu
fez-se o nosso silêncio.
Olhamos alhures, folhas de um outono
que demora a distância de uma estrela já morta.

Mas amamos as explosões,

o instante que abandona sua condição
impermanente de ida
sem volta.

Porque um depois
guarda sempre o atônito inerte,
quando do além-ímpeto espelha no ser
uma reflexão vazia
e
a postura
curva
de um cansaço sem
repouso.

l. Mandamento

Eu só queria atravessar algumas ruas,
escolher os pães mais macios,
olhar distraidamente as meninas a caminho da perfeição
e ser minha inércia no vácuo tranquilamente
sem ter que sentir a culpa de viver
nos olhos dos vira-latas que aguardam a hora do lixo.

Não pude,
não fui capaz do egoísmo ameno,
tive que matar minha individualidade.
Todo humanista é um suicida.
"Tudo creio já foi pensado e dito por tantos e tontos. Ou quase tudo. Ou quase tontos. De modo que não há novidade debaixo do sol - e isso também já foi dito. "Os temas do mundo são pouco numerosos e os arranjos são infinitos" - falou Barthes. Então, o que se pode fazer de melhor é dizer de outra forma. Se for para tirar gosto poético, vai bem perverter a linguagem. Não bastam licenças poéticas. Há que se ir às licenciosidades. Temos de molecar o idioma para que ele não morra de clichês. Subverter a sintaxe até a castidade: isto quer dizer: até obter um texto casto. Um texto virgem que o tempo e o homem ainda não tenham espolegado. O nosso paladar de ler anda com tédio. É preciso propor novos enlaces para as palavras. Injetar insanidade nos verbos para que transmitam aos nomes seus delírios. Em Nunes Peres Sandeu, nas Cantigas dos Trovadores Medievais selecionados por Clarice Berardinelli, encontro estes versos:

e, poys aqueles olhos meus
Por el perderem o dormir

A beleza se abre no verso "Por el perderem o dormir". Porque perder o dormir está no lugar de perder o sono, que é um lugar comum e portanto se esgotou de expressar. Há que se encontrar a primeira vez de uma frase para ser-se poeta nela. Mas tudo isso é tão antigo como mijar na parede. Só que foi dito de outra maneira."




trecho de entrevista do velho bandarra Manoel de Barros

Poema Ateu nº 2

Acredito a liberdade que aceitamos,
muito mais que a que perseguimos, seja esse claro enigma,
esse silêncio corporal ao qual nos devotamos
Como que inevitavelmente face a face
na véspera do momento em que me desfaço da ilusão e dos pressupostos
e mergulho no teu mistério de beleza e silêncio.

A perplexidade de amar descomedidamente todas as coisas,
próprias e inapreensíveis como elas são, apesar da nossa contingência
de estarmos sempre diante do nada.

Atempo

Deslimito justaposição de orgãos
recoloco-me em lugar algum
quase penso que saí do palco


aí é que nele piso?
sombra, olhos, inalação


coadjuvante de si
me busco entre as cortinas.






poema de meu caro amigo Diego Roberto
que eu tomei a liberda-de publicar e nomear.

Poema Ateu

Só mesmo um ser finito trás em si
o vazio reminiscente
capaz de recriar o impossível.
E de tudo que compõe o futuro,
só na arte perduramos.

Só na arte há o impossível,
e ultrapassamos o tempo, contrariamos deus.
Afora isso, nenhum herdeiro do mundo
significaria ao mesmo tempo que eterno - retorno.

Poema Ínfimo

Desde que morri da eternidade
sofro do ínfimo,
sou irrisório à finitude
e contingente além dos sábados.

A última vez que me reconciliei
com meu domicílio intemporal
foi quando quis beijar tuas palavras,

não alcancei a substância etérea.

amei tua boca.

Poema Solitário

"existe um espaço de silêncio intransponível mesmo nos mais íntimos amores."
Lya Luft


Sofro.
Sou incomensuravelmente solitário,

Existo no ermo entre as pessoas
esperançoso de não ter que ser compreendido - sem alheamento.

Amo a incerteza
cercado de grandes convictos.
Cuido que meu poema não rime,
que não lhes cause piedade ou comiseração.
Apenas percebam com olhos de cachorro
minha ilha sem pontes.

Porque Estamos Entregues

Não somos mais do que as memórias do que fizemos,
do que não fizemos,
arrependimentos sobre a própria condição
de existir e significar.

Ah, como doemo-nos vaidosamente na solidão remota,
como nos super-estimamos na fraternidade de um "bom dia",
simplesmente porque se não o fizéssemos talvez o mundo parasse de funcionar,
talvez precisássemos de construir mais árvores.
Que infeliz projeto,
não coubemos no mundo - que foi feito sem tamanho.

Mas ainda assim, me absurdo, me absurdo face ao meu próprio ser perplexo,
me absurdo porque palavras desgastam-se,
como qualquer engrenagem, como qualquer desespero, que se ameniza,
como se o ensaio falasse a verdade presa no medo,
subordinada à coragem! suspensa aos valores,
porque precisamos e nada mais.

trecho de "Viva o Povo Brasileiro" de João Ubaldo Ribeiro

"(...) - Mas não é só por isso - respondeu ele - É também porque quero ir.
- Sim, eu sei, essa vontade também me dá - falou ela, para grande espanto dele, que esperava pelo menos uma risada irônica. - Eu sei que é verdade tudo o que pensamos sobre essa guerra e tudo o que pensamos sobre a situação de nossa terra, mas também esta é a nossa terra, é até principalmente nossa, que somos quase todos os que nasceram e vivem nela. Portanto, há alguma coisa nessa guerra que também é nossa, é a nossa terra, ou será um dia a nossa terra. Temos que resolver pelo que nós achamos, pelas nossas idéias, porque isso é necessário, mas não podemos esconder outras coisas, talvez miúdas, mas sempre existentes. Eu também sinto um arrepio quando se fala no Brasil, quando ouço os hinos e vejo o povo levantar os olhos para a bandeira. Pois não é nossa bandeira e é nossa bandeira. Eu é que não posso ir: sou mulher, sou bandida e tenho uma responsabilidade mais importante. Se eu deixar que essas idéias caiam, como vai ser? Mas tu não, tu podes ir, tu tens que viver isso também, lutar pelo que se ama sem se poder amar, pelo que é da gente mas se vira contra a gente, é de quem nos comanda na guerra para nos dominar na paz. É isso mesmo, talvez a vida seja assim, talvez tu aprendas alguma coisa que nos possa ensinar.
- Nunca pensei...
- Eu já, eu vivo pensando, eu já imaginava que tu ia querer ir, desde o Sete de Janeiro em que nosso pessoal esteve em Itaparica fantasiado de caboclada. E também penso o seguinte: será que, com essa guerra, as coisas não vão melhorar? O Exército tem sido sempre um bando de maltrapilhos desordeiros comandados por estrangeiros que desprezam tudo aqui, recheado de mercenários também estrangeiros, que também tudo desprezam. O Exército, que é de gente do povo, tem sido sempre a pior arma contra o povo, mais do que a polícia, mais do que a inquisição. E assim mesmo os poderosos maltratam os militares, não os querem receber em suas mansões, não querem suas filhas casadas com eles, não querem seus filhos na companhia deles. Talvez agora o Exército compreenda, depois de sacrificar-se pelos que ficarão em casa engordando, criticando suas ações e lhes enviando ordens impossíveis de cumprir, talvez agora compreenda que não pertence aos senhores, mas ao povo, não é a Guarda Nacional, mas a Guarda do Povo, não é a arma contra o povo, mas a arma para o povo. Talvez agora compreenda que o lado dele é o nosso lado, não o lado daqueles a quem serve, nem sequer a troco de migalhas, quanto mais da honra de servir seu próprio povo. Muitos deles voltarão heróis, cobertos de glórias e lendas, nenhum deles será mais o mesmo, depois dessa guerra. E tenhamos a esperança de que passem a ser como devem ser, passem a ser o Exército do Povo. Sim, vai, vai lutar no Paraguai, vai alentar teu pai, vai aprender fazendo e vivendo. Eu não tive pai, mas tive meu avô, que foi mais do que um pai, e uma vez ele fez comigo o que estou fazendo contigo agora. Vai, faz, aprende, ensina."

Um Lugar Ao Sol

O vosso correspondente em Roma não se encontra em Roma. Em Roma não há ninguém. Fugiram todos à praia em gozo de sol e férias. Sigo a multidão com minha tenda, meu trapézio e meus leões. Essa é a vida de artista, correr aonte está o público para poder fingir que é o público a nos correr atrás. Dia desse baixei em Capri, que, segundo o cicerone, ostenta as praias mais lindas do mundo depois do Rio de Janeiro. Comovido, agradeci, dobrei a gorjeta e fui conferir. Realmente o azul do mar, com as rochas brancas e a mata cheirosa, é um espetáculo único. Mas ir à praia, aí é que são elas. Convenci-me de que brasileiro não sabe tomar banho de mar, e olha que tive o maior empenho em aprender.

- Paga-se a entrada!! Pois não. Paga-se o vestiário? Pois não.

O mictório também? Não tem problema.

Entrada, vestiário, mictório, guarda-sol, cadeira, bóia, desci à praia cheio de tickets e privilégios. Irrepreensível, pensei. Agora que descobri os macetes é só deitar na areia, comprar um chica-bom e pensar besteira, igual a Copacabana. Mas qual não foi a minha surpresa quando cheguei à areia (pedregulhos) e a encontrei literalmente repleta de cabeças, pernas, barrigas e bumbuns. Tentrei abrir caminho, pedi um passinho à frente, por favor, disse que ia saltar no próximo ponto, mas os corpos estavam surdo-moles no mormaço. Recuei alguns metros, pisei nas partes de uma senhora e subi os degraus de volta. Lá em cima, sobre o cimento, havia um colchão de ar jogado à toa. Deitei e ameacei um cochilo mas o bilheteiro balneário veio perguntar em inglês se eu era da família americana. À minha primeira pronúncia ficou evidente que eu não era não de tão boa família, diante do que fui convidado a me retirar do colchão esplêndido. Nisso me revoltei bradando que queria um lugar ao sol, queria um lugar ao sol, frase que aprendi nos bastidores da televisão. Na minha terra, insisti, a praia é do povo como o céu é do condor.

- Mas aqui o colchão é dos americanos - disse o bilheteiro friamente.

Eu não ia discutir, ainda mais que os americanos tinham acabado de invadir a lua, uns dias antes. Eu não ia discutir por causa dum colchão de ar. Não discuti mas fiquei com aquilo atravessado na garganta, por isso fui até o bar para engolir melhor. Uma droga dum colchão de ar. Sentei no bar e fiquei vendo os americanos prostrados ao sol. Pareciam cada vez mais bonitos, saudáveis, bronzeados, e eu muito cinzento e verde. Assim passavam-se as horas e nada de vagar um só buraquinho. Pelo contrário, chegavam sempre novos banhistas, desses gordos, sem ossos, gelatinas. Iam falando please e acabavam se encaixando. O aglomerado já formava uma massa tão comprimida que dali a pouco, com mais um aperto, dava a impressão que uns e outros iam estourar para o alto que nem pipoca. E quando alguém se levantava, deixava sempre um chapéu para garantir a vaga. Às cinco e meia resolvi desistir mas aí abriram um primeiro espaço. Saiu um, saíram dois, saí eu e corri a reservar meus pedregulhos. Sobrou uma cadeira, tomei conta. Apossei-me duma bola, dum colchão, dum guarda-sol, tudo junto. Afinal eu tinha os tickets, estava no meu direito. Só achei estranho aquele êxodo assim precipitado, pois em poucos minutos eu estava sozinho na praia. Engraçado, porque americano não é de abandonar um bom lugar sem mais nem menos. Que diabo, se eles foram embora é porque algo de ruim vem por aí. Pensei em chuva, tempestade, tubarão, mas nada. Só os bilheteiros que estavam recolhendo tudo, o bar que estava fechando, o último ônibus que estava partindo e eu que estava sendo expulso. Expulsão não é bem a palavra, não é exata. Mas ficam aqueles garçons resmungando e olhando para a sua cara. E vem aquele empregado mandando você erguer os pés, os dois ao mesmo tempo, para passar o escovão debaixo. Como boteco de português à meia-noite. Que é isso, perguntei, vai fechar a praia? Pois é claro, disse o empregado, às seis horas nós fechamos tudo. E continuou a esfregar sabão na praia. Não era o caso de contestar a organização lá deles, mas confesso que fiquei perturbado. Ainda mais quando, ao deixar o local, olhei para o mar e vi o que vi. Aliás, não sei se vi mesmo, é difícil acreditar. Vai ver que o sol me batera na cabeça de mau jeito. Ou então fora o gim, sei lá, gim é uma bebida desleal. Não posso jurar nem peço que me creiam, mas o que vi foi o seguinte: o mar esvaziando, esvaziando, os barcos acomodando-se entre as pedras e o Mediterrâneo sendo chupado pelo ralo, dando lugar a magníficas auto-estradas, caminhões, ferrovias, semáforos, supermercados, perdendo-se de vista no horizonte.


Crônica de Chico Buarque