Estatuto Velho

Os olhos estão viciados,
palavras; fáceis presas, rélis vício.
Ficaram ficamos
tão habituados ao que não somos
que nos viciamos: TUDO!
pelos excessos,
As vozes?... coitadas,
vulgo, chulo maltratar,
por nós e calos vitimadas,
viciadas.

Tempo livre?
Não há. Há penas nos badalos dos relógios
que contam nosso tempo vivo,
que encurtam a distância que nos separa da nossa morte.
Como se morrer fosse o único remédio para o tempo.

Pobre condição humana,
subjugados pelas verdades de ontem
e os cassetetes na volta do trabalho e o trabalho na hora do descanso
e o descanso na hora da morte.

Não há glória no passado

[nostalgia é uma cicatriz na alma]

não há presentes no presente. O futuro é uma mentira metafísica.
O mais perto que já cheguei do meu destino
foi enquanto dormia.

Memórias de uma puta triste

Ainda era muito menina quando me apaixonei pelo primeiro que chegou como quem vem do florista, era bonito e bem dotado. Ele doeu em mim muitos começos, mas ai, foi aí que descobri, eu gostava mesmo de sangrar, de ser marcada. Só não sabia que o amor pode não ter passado ou memória. Ilusão de florista que se descuida outonal. Entendi depois que o amor é um caduco com o vigor dos vinte anos ou uma criança com o tesão adolescente. É mesmo um impulso que só é sincero até o momento de gozar. Eu não gostava de sangrar e ser marcada, a verdade é que eu só gostava se sangrasse e fosse marcada. Mas não acho que o amor seja só isso. A gente guarda ele pra noite, igual as pedras guardam o sol do dia. Bobagem dizer que a temperatura estável do corpo seja de trinta e sete graus, o corpo guarda em si o calor dos amantes bem ou mal amados. É assim reconheço as pessoas, através da história que seus corpos me contam. Se se desgastaram ou ficaram frios e ensimesmados, se ardem febris e são violentos, se querem ficar ou estão só de passagem. E sei ao primeiro toque se será um homem que meu corpo vai guardar ou esquecer. E há tantos desses seguindo meus passos na rua de calçamento, me olhando famintos de trás de balcões, vitrines, guichês. Mas é certo que depois dos segundos e terceiros que vieram embriagados, desvalidos, aleijados, milionários, domesticados não importa! Depois de tantos, lembrados e esquecidos, é certo que não passei um dia sequer sem me lembrar de um específico, dos que chegam do nada, não me deitei com um outro homem sem que o comparasse com aquele especificamente. Comparo inevitavelmente os movimentos e a maneira com que me olham e o que dizem e o que calam. Se dormem comigo na primeira noite ou saem furtivos. Se me puxam os cabelos e contemplam o próprio membro me penetrando. Às vezes penso que o fato de ele não precisar ser o primeiro me fascina. Tive outros homens diante dele, só pra provocar nele qualquer ira, despertar na sua solidão a mesma paixão voraz com que ele me comia. Porque de primeiro me assustei com a idéia de não poder me despertencer e me dar a qualquer um por uma necessidade obstinada de ser só dele. Mas ele era cigano. Era do mundo. De todas as putas, madames, dondocas e carolas. Me perturbou pra sempre. Se me masturbo alguma vez hoje em dia, é sempre inspirada nele. Me esfregar com outros homens sem amá-los ainda que de um jeito efêmero, só pra testá-lo e ver que ele me olhava em silêncio, só serviu pra despertar a minha própria ira de não ser puta nem donzela, de não ser minha, nem dele nem de outro qualquer e me entreguei a ele com raiva. Horas à fio consumindo toda minha raiva de quatro, no seu colo, nas minhas unhas enterradas nele, em cada mordida selvagem. Me arrancando os gemidos, sussuros e gritos mais animais enquanto me olhava como quem diz, eu não quero ser o maior nem o primeiro, porque você já é minha, eu sei quando calar e quando te dizer que quero te ver gozar. E era exatamente assim que acontecia, e eu caía exausta livre de qualquer culpa, de qualquer raiva, em paz com aquela sensação de pertencida a qual eu tanto resistira. Então ele se virou, levantou, me olhou muito sério e me disse vestido, você não vale nada. Foi embora sem dizer mais. Foi embora sem voltar mais. E eu o comparo com todos os outros desde então. E não há uma noite que eu não pense nele enquanto me entrego a outros homens que nunca me terão da maneira que ele me tem.

boca de palavras

A palavra
não é maior do que dizê-la.
As minhas são minhas porque eu sou egoísta,
nem adianta me dizer que saudade
é maior que a minha boca
ou meu dizer. Eu sou egoísta e as palavras são minhas.
Se eu repito e desgasto as pobres
mais minhas elas passam a ser,
como filhas que eu crio jogadas como quero.

Eu trago as palavras numa sacola,
amasso todas elas e jogo nos olhos das crianças e dos
cachorros. Elas tentam
impessoalizar a boca. Mas a boca é minhas e grita:

- eu.

a boca é minha e grita:

- fogo.

Grita outras bocas de palavras sem boca.
Minha boca tem fome de muitas bocas.
Minha boca significa sem significante.
É uma sacola de palavras furadas e desejos carnais. Minha boca,
é uma sacola furada de palavras carnais. Anuncia fechada
a quarta-feira de cinzas de cada carnaval. Minha boca,
mastiga as palavras de dentro pra fora. Minha boca,
na falta de outra, se beija, se chupa, se mastiga,
se engole e se cospe só por distração. Minha boca,
mordeu a maçã há muito tempo atrás quando ainda se faziam homens de barro
e mulheres da costela de homens de barro. Foi sim,
Minha boca que mordeu a maçã e aquela moça nua naquele jardim bonito que não lembro o nome.

Faz muito tempo.

Faz muito tempo
Minha boca está cheia de prazeres e pecados,
de promessas de pedaços, cheia de putas, de pedidos.
Minha boca,
quer morder maçãs, quer morder meninas, quer continuar pecando,
quer partir copos corações. Minha boca,
quer comer a própria fome e repetir o prato.

incabível

O tempo não coube nas mãos.
Escorreu como água escorre.
Ficaram as ausências sublimadas
enquanto eu bebia,
e o corpo cuidou de guardar em si as impressões
de cada noite acompanhado
com ou sem amor.
Coisas que dizem mais que por bem ou mal,
coisas que dizem.
Eu queria escolher sem renunciar,
mas também não coube no tempo,
nem coube na liberdade a idéia de me prender
porque eu não cheguei a conseguir.
E fiquei preso à minha liberdade portuária.
A minha verdade
é que o amor jamais chegou a caber no tempo.
E o tempo das cartas, das fotografias, da casa velha, do trem urbano, até mesmo dos velhos segredos... passou. Coisas que ainda existem,
que podemos revisitar, mas que não nos alcançam mais,
Coisas que se encontram com a fumaça da ausência,
que ultrapassam sua condição passada quando se liquefazem na lágrima presente.
Chorar é doer o interrompido.
O amor não coube no tempo,
escorreu como água escorre e continua escorrendo.