Carta para Manoel de Barros

Por fácil que seja o não ter que dizer e ficar de sobrevôo na amplitude
das coisas anominais que penso ter aprendido nas impressões versadas
que Bernardo derramou dos olhos e das mãos e o senhor muito manso poesiou,
Drummondiana é a razão que me leva a querer te escrever o que ainda
que em forma de assobios lhe chegasse algo parecido com uma carta,
e talvez lhe fizesse lembrar daquele seu amigo Rômulo Quiroga que pintava
com casca-árvore-semente-gosma-de-lagarta e até quem sabe te inspirasse
escrever a ele uma carta sobre nada que guardasse consigo muitas águas
e um caramujo-correio a levasse junto com terra úmida mastigada
e cascalhos envelhecidos enquanto o Bernardo caça urupê no mato e se esquece
das mariposas pousadas sobre suas orelhas de pau como adornos naturais
apaziguados em seu coração de peixe serenado - coisa que mistura
propriedades delirantes nascidas na quimera de vegetais subtropicais
ao esquecimento de muito antigas ignorãças que só as pedras
roladas de muitos temporais acumulados saberiam não dizer nem sombrear.

Garças do pantanal trazem no papo mistérios silenciados,
sinto saudade do seu sítio na roça que nunca fui.

Ode à idiotia

Que o espelho cuide sempre de esconder a verdade
Que o espelho seja o meu Outro quando eu estiver só
Que eu nunca esteja só durante a novela das nove
Que o jornalismo sangre cada vez mais e diga cada vez menos
Que a gaveta tenha sempre analgésicos guardados
Que a enxaqueca de cada dia nos dai hoje nunca falte
Que a justiça de cega esmole na sarjeta algumas misericórdias
Que a ciência sentencie a razão do pão do pó e do pâncreas
Que a razão justifique a polícia
Que a fé não se realize senão por indução
Que os heróis tenham pelo menos trezentos anos de história
Que o medo seja sofrido em paz na propriedade privada
Que o amor não se esqueça de fazer as compras do mês
Que a liberdade mova uma ação jurídica nos tribunais
Que de carro se use cinto de segurança
Que o mundo deixe de ser redondo
Que os monstros não sejam feitos de aço
Que a favela anoiteça em paz
Que Antônio Conselheiro seja de uma vez por todas esquecido
Que o brasileiro não seja mais que aquele que vende pau brasil
Que a economia jamais seja considerada política
Que essas verdades que digo desdobradas se repitam à exaustão.