Pequena oração madrigal

Não abandono os momentos pequenos
porque a vida
não é mais farta que um grão de areia,
de arroz.
Me incomodo de não querer
porque a vida
não é mais pobre que o egoísmo,
que um desengano.

Esqueci aquelas rezas ensinadas
porque aprendi as vividas.
Missas de sol e lua,
línguas de fogo e de ferro.
Pedra, potência e rio correndo
e mundo girando e estrelas
caindo nos telhados das igrejas
e dos currais, nos pastos, nos leitos
E nos ais!

Eu que sou isso e creio em Deus,
rezo de olho aberto,
rezo na ponta de um lápis quebrado
Com a fé das montanhas e das mostardas.
Eu que não rezo de mãos juntas,
não estendo os braços aos céus,
Não entrelaço os dedos. Eu que gosto
da sombra que não tem passado.
Peço sossego na vista
e uma paciência ruminante.
Uma merda porque falta amor
ou
sobra sem destino. E o correio
anda caro! E as cartas não se
escrevem mais tão apaixonadamente.
E os e-mails tornaram-se banais
porque são fáceis. Os românticos também:
banais e fáceis.
Que triste fim levou o amor. Virou
uma coisa previsível.
Virou raiva!... de carinho.

Os tempos de gelo
ardem mais que os de fogo.

desabafo

Acordar, tomar banho, fazer a barba sem o auxílio do espelho, tomar o café, ler o jornal,
sair de casa, ir trabalhar, cumprimentar conhecidos pelo caminho,
fazer uma breve reverência aos velhinhos que passeam ao sol das oito,
levar um susto com a buzina de um carro estressado,
seguir desconcertado. Atravessar na faixa de pedestres
que na minha cidade raramente é respeitada,
recusar os panfletos que garantem seu amor de volta em 24h
ou seu dinheiro de volta. Esperar o ônibus,
fumar um cigarro enquanto isso, fora da marquise,
respeitando a lei anti fumo. Respeitar todas as leis
que ficam guardadas em códigos empoeirados que só atualizam
suas versões, para que os estudantes de direito não reaproveitem
os de seus pais; não pra melhorar as leis. Respeitar leis empoeiradas, respeitar governantes
lustrados de muitos óleos e peroba que disfarçam sua posição de muitas décadas.
Fazer uma pausa para o almoço, nem dá tempo de voltar em casa hoje,
comer a comida que foi feita pra dar lucro e não pra nutrir,
nem carne nem pensamento. Pagar e pedir o troco em chicletes - ajudam na digestão -
enquanto se acende outro cigarro - o digestivo é um dos mais prazenteiros do dia -
o dia é longo se contado em cigarros. Penso: tudo bem que não consultei a mulher do Tarô, mas meu amor
não voltou, e eu não esperei só 24h. Já perdi as contas, talvez 24 meses,
o celular toca sempre de repente e basta uma bosta de pomba no ombro,
um chiclete grudento na sola do sapato - talvez um chiclete que eu mesmo cuspi noutro dia igual a esses que passou - basta um telefonema do banco cobrando
o que eu não gastei, o sinal fechado, o olhar atento do policial,
a fumaça diesel, o pivete e o pedinte de cada esquina e pronto:
você se descobre um hipócrita que se iludiu de ter o dom da poesia e da literatura,
que mentiu aplicação ao violão e só foi realmente bom em matar aulas, beber escondido quando menino e queimar aranhas.
A estupidez é uma pulsão humana como tantas outras
e ela ainda me disse: " isso não atrai as pessoas."

Haiti

De manhã acordo cedo
porque é a hora do dia em que eu me sinto mais divino
só por ser humano. Depois me deito de novo.
Acordo fora de hora
fora de tempo,
ouço minha mãe fritando ovos
que comprei ontem e fiquei devendo.
A tv escolhe a hora do almoço
pra dizer que no Haiti não tem almoço,
desligo a tv, esse sol que não dorme nunca.
Gosto da gema bem molinha.
A gema também me lembra um sol
enquanto que o sol de fato me faz esquecer todas as coisas,
o sol que não cabe no olho.
A fome que não cabe no almoço
O Haiti que não cabe na América
e os inocentes que não cabem no Leblon
porque seus carros não cabem na garagem.
Usam óculos escuros e cremes suaves contra os sóis.
O almoço é só uma convenção.

Descaminhos

A Solidão, a Morte, o Gozo
igualam todos os homens.
Muitos se perdem por esses descaminhos,
não faz mal
nem bem.
Impossível condenar quando já se é um condenado.
Condenado à Morte, nascido no Gozo e sozinho
inescapavelmente sozinho.
Conheço os que temem a Solidão pelo seu jeito de andar,
eu não a temo
eu tenho vocação pra ser sozinho, é a Minha Solidão que me acompanha
a toda sorte.
A Morte é a certeza de um encontro infalível
Lá no Final da minha estrada de passos.

Gozar é se Libertar de toda Necessidade.
Liberdade e Necessidade

Gozar.

Há Fome também, não me esqueci,
fiquei pra sempre é
desesquecido por esses meus descaminhos,
vi a Fome devorando a Liberdade dos homens,
das crianças e das mulheres sem nome.
Tão solitários todos eles,
tão desbotados os olhares e embrutecidos
os seus prazeres.

Num desses ébrios desvarios
confundi pra sempre o Silêncio
com a Necessidade.

Ensimesmei-me enquanto escrevia
e amei Minha Solidão.
Ai o Amor sem quando
caminhante desses e de todos os outros descaminhos
sem razão e sem juízo.

Se

Se a vida fosse uma palavra
eu não ousaria dizê-la.
Se fosse fogo
eu seria as cinzas espalhadas.
Se não fosse nada
eu era o Deus sentado.
Fosse um círculo
e eu amava a força tangente
que se perde na alucinação
de querer ser linha,
Descuidado de que os carretéis enrolam-se
sobre si mesmo.
Se a vida fosse morte
eu era a terra:
escavada, revolvida.
Se fosse liberdade; passarinho.
Se a vida fosse nascimento
eu era a poda.
Se a vida fosse chuva
eu era o sertão inteiro
E se a vida fosse só um poema inacabado
eu era a pena seca e uma lágrima salgada.

Elemento

A gente se sabe
não só no gozo.
É conflito é fogo
é foda.
Mas há o vento
sábio não dito entre todos os verbos.
Há vento e verbo e fogo!
Se comendo e fustigando e se fodendo,
com amor.
Sossego é um sopro
que faz curva antes da gente.
É assim a natureza indomável de todas as coisas.
Queima e arde ao vento,
arde o verbo. Arde
apenas.