desabafo

Acordar, tomar banho, fazer a barba sem o auxílio do espelho, tomar o café, ler o jornal,
sair de casa, ir trabalhar, cumprimentar conhecidos pelo caminho,
fazer uma breve reverência aos velhinhos que passeam ao sol das oito,
levar um susto com a buzina de um carro estressado,
seguir desconcertado. Atravessar na faixa de pedestres
que na minha cidade raramente é respeitada,
recusar os panfletos que garantem seu amor de volta em 24h
ou seu dinheiro de volta. Esperar o ônibus,
fumar um cigarro enquanto isso, fora da marquise,
respeitando a lei anti fumo. Respeitar todas as leis
que ficam guardadas em códigos empoeirados que só atualizam
suas versões, para que os estudantes de direito não reaproveitem
os de seus pais; não pra melhorar as leis. Respeitar leis empoeiradas, respeitar governantes
lustrados de muitos óleos e peroba que disfarçam sua posição de muitas décadas.
Fazer uma pausa para o almoço, nem dá tempo de voltar em casa hoje,
comer a comida que foi feita pra dar lucro e não pra nutrir,
nem carne nem pensamento. Pagar e pedir o troco em chicletes - ajudam na digestão -
enquanto se acende outro cigarro - o digestivo é um dos mais prazenteiros do dia -
o dia é longo se contado em cigarros. Penso: tudo bem que não consultei a mulher do Tarô, mas meu amor
não voltou, e eu não esperei só 24h. Já perdi as contas, talvez 24 meses,
o celular toca sempre de repente e basta uma bosta de pomba no ombro,
um chiclete grudento na sola do sapato - talvez um chiclete que eu mesmo cuspi noutro dia igual a esses que passou - basta um telefonema do banco cobrando
o que eu não gastei, o sinal fechado, o olhar atento do policial,
a fumaça diesel, o pivete e o pedinte de cada esquina e pronto:
você se descobre um hipócrita que se iludiu de ter o dom da poesia e da literatura,
que mentiu aplicação ao violão e só foi realmente bom em matar aulas, beber escondido quando menino e queimar aranhas.
A estupidez é uma pulsão humana como tantas outras
e ela ainda me disse: " isso não atrai as pessoas."

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